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A ficção como meio de construir narrativas e antecipar tendências

Grandes corporações já estão contratando ficcionistas para imaginar as demandas do futuro e desenvolver produtos e serviços.

TENDÊNCIAS03/03/202211 minutos de leitura

As narrativas de ficção são ferramentas poderosas que remetem às primeira civilizações que desenvolveram a escrita. A arte de inventar e contar histórias faz parte da natureza humana. A ficção pode ser usada tanto para retratar uma determinada realidade quanto para especular o futuro - características que podem ajudar a antecipar tendências para inovar.

A ficção é um meio de compreensão do mundo. O autor americano Mark Twain escreveu: “a verdade é mais estranha do que a ficção, mas é porque a ficção é obrigada a se ater às possibilidades; a verdade não”. Entender o mundo - e antecipar o futuro - é justamente um dos maiores desafios que corporações e cooperativas enfrentam na gestão da inovação.

Algumas instituições já contam até com profissionais especializados em prever tendências - os coolhunters - tamanha é a relevância de estar na proa. E muitos ficcionistas, em diversas mídias, se arriscam justamente a especular como o mundo e a sociedade estarão no futuro. E muitas previsões oriundas da ficção já são realidade.

Neste post, iremos explorar como a ficção é capaz de antever tecnologias e dinâmicas sociais e como as organizações estão se baseando nessas predições para desenhar suas estratégias de inovação. Boa leitura!

Ficção especulativa

A premiada escritora canadense Margaret Atwood, reconhecida pelo livro O Conto de Aia, que inspirou uma série de sucesso com o mesmo nome, faz uma distinção entre ficção especulativa e ficção científica. Enquanto a ficção científica é focada em aparatos tecnológicos ou cenários inverossímeis, a ficção especulativa trata de futuros plausíveis, que podem acontecer.

Margaret Atwood entende que a ficção especulativa existe como um reflexo do mundo real. Trata-se da construção ficcional de um futuro palpável de acordo com as tendências tecnológicas, culturais e sociais correntes. 

Dentre os subgêneros da ficção especulativa que buscam explorar mecanismos sociais e tecnológicos estão:

  • Utopias e distopias: obras que imaginam o futuro através da construção de cenários idealistas (utópicos) ou catastróficos (distópicos). O clássico romance distópico Fahrenheit 451, escrito por Ray Bradbury e adaptado às telonas por Truffaut, previu a identificação biométrica e o atendimento bancário de 24h ainda em 1953.
  • História alternativa: consiste de cenários compostos a partir de uma realidade alternativa. O Homem do Castelo Alto, clássico da ficção científica que virou série de sucesso, imagina como seria o mundo caso a Alemanha tivesse vencido a Segunda Guerra Mundial, por exemplo.

O futuro do mercado

Uma coisa é fato: a tecnologia se desenvolve em uma velocidade que pode ser muito difícil de acompanhar. Somente ficar a par dos noticiários e das soluções tecnológicas disponíveis no mercado pode não ser suficiente - é preciso olhar para frente.

O planejamento para um novo produto tem que levar em conta suas aplicações no futuro, interpretando as pistas do presente. É preciso estar atento às tecnologias atuais, mas sempre de olho nos próximos passos de seu desenvolvimento.

E quem está continuamente buscando interpretar o futuro a partir das pistas do presente? Os ficcionistas. Não é à toa que grandes instituições já ligaram os pontos e estão construindo cenários visionários para planejar os rumos de suas políticas de inovação.

Usando a ficção para explorar inovação nos negócios

Em um relatório sobre a exploração da ficção para a inovação nos negócios, a consultoria PwC determina que as ideias de futuro devem colocar a experiência humana em primeiro plano. O exemplo dado é a predição do telefone celular na série Star Trek: o foco não foi na tecnologia de funcionamento do aparelho, mas na necessidade humana de comunicação instantânea.

O emprego da ficção para a compreensão de tendências futuras a fim de nortear a inovação ganhou a alcunha de design fiction e está ganhando espaço no orçamento das big-techs. O relatório da PwC, contudo, explica que grandes e pequenos negócios podem tirar proveito do design fiction - e as cooperativas não são exceção.

O argumento é de que, ao antecipar às demandas futuras de mercado, ganha-se uma vantagem competitiva na elaboração de novos produtos ou serviços. A compreensão de “como” e “por quê” novas tecnologias serão adotadas pelas pessoas aumenta a tangibilidade e chance de sucesso em novos projetos.

Guia para lideranças

Em artigo publicado pela Harvard Business Review, o romancista Eliot Peper defende que os gestores devem ler mais ficção científica. Não por ela ser capaz de fazer previsões, mas por repensar premissas do comportamento humano e entregar novas perspectivas sobre a interação entre as pessoas e o mundo.

O consultor de marketing Igor Beuker, que já trabalhou em projetos com marcas globais como Nike e Amazon, é mais um defensor do consumo de ficção científica por executivos e gestores. “O futuro se trata de ser imaginativo, não de estar certo”, escreveu. Para ele, imaginar o futuro ajuda a quebrar tradições que retardam a implementação da inovação.

Ficção especulativa corporativa

A movimentação em prol do uso de ficção para antecipar tendências do ambiente de negócios amadureceu a tal ponto que existem consultorias especializadas atuando nesse setor. Seus serviços, contratados por gigantes da economia mundial e até mesmo pelo exército dos Estados Unidos, são concorridos - e custosos.

A Experimental.Design é liderada por Alex McDowell, um designer de narrativas com farta experiência em Hollywood. A companhia é especializada em world building, ou construção de mundo, por meio da ficção especulativa.

Contratada pela montadora Ford, a Experimental.Design construiu o protótipo de uma cidade do futuro, em que os espaços são mais ocupados por pessoas, em detrimento dos carros. Definitivamente, um desafio para uma das líderes da indústria automotiva - ao qual a Ford pode, agora, se antecipar e inovar.

Quando De Volta Para o Futuro 2 prevê um videogame controlado por movimentos, que se materializou com o sucesso do Nintendo Wii, ele antecipou o comportamento humano, além da tecnologia. Imaginar o futuro a partir das necessidades e vontades das pessoas é o gatilho da inovação.

Cenários do futuro

Uma outra abordagem do uso corporativo da ficção para o desenvolvimento de cenários especulativos destinados a instituições é a da SciFutures. A companhia desenvolve protótipos de produtos e serviços com base no futuro imaginado por escritores de ficção científica e especulativa.

Com a ajuda de seu time de escritores, a SciFuture ajudou a varejista do ramo de casa e construção Lowes no desenvolvimento da Holoroom. A tecnologia permite a visualização de mudanças na estrutura e decoração de uma casa com ajuda da realidade aumentada quando essa ainda não era uma tecnologia disponível aos consumidores finais.

Quando o produto sai das páginas

Os leitores digitais inovaram e revolucionaram o mercado editorial e, com a pandemia, ficaram cada vez mais populares. No Brasil, a venda de e-books aumentou 83% só em 2020. E o grande responsável pelo desenvolvimento desse setor é o Kindle, da Amazon, que tem uma dominância de 72% no mercado americano.

Leitores digitais já tinham sido feitos antes, mas sempre com execução pouco exitosa. Inspirado no livro The Diamond Age, do escritor de ficção científica Neal Stephenson, em que um engenheiro rouba um livro interativo para sua filha, Jeff Bezos, fundador da Amazon, idealizou o Kindle. O aparelho por pouco não se chamou Fiona, em homenagem à personagem do romance.

As habilidades analíticas de Stephenson eram tão apreciadas por Bezos que ele foi contratado para atuar na Blue Origin, empresa de desenvolvimento de foguetes do dono da Amazon. Atualmente, o escritor ostenta o cargo de “futurista chefe”, na Magic Leap, explorando o uso da realidade virtual com foco no metaverso - termo que ele inventou em seu livro Snow Crash.

O metaverso representado na ficção

O metaverso ganhou as manchetes do mundo todo quando o Facebook anunciou que mudaria de nome para Meta e investiria pesado na criação de seu universo virtual.

Desde então, diversas organizações anunciaram investimentos para o metaverso. Por enquanto, o metaverso é mais promessa do que realidade. Mas a ficção já apontou direções do que se pode esperar.

Na obra de Stephenson, o protagonista vive duas vidas: na real, ele é um entregador de pizzas; na virtual, é um príncipe guerreiro. Contudo, a obra que deu popularidade à ideia de um universo digital independente veio da sétima arte: a Matrix.

Dentro da Matrix

No clássico da ficção científica de 1999, o mundo é dominado por máquinas que mantêm os humanos em um universo artificial utópico enquanto seus corpos reais vivem em condições precárias. No decorrer da película, um programador descobre que vive em um mundo artificial projetado por uma inteligência artificial e se rebela.

Matrix antecipa a discussão ética entre a escolha de viver entre uma realidade imperfeita ou em um mundo ideal simulado que os projetos para a construção do metaverso instigam. As reflexões feitas pelo filme servem de alerta para os riscos e perigos de quem planeja inovar de olho no metaverso. E essa não foi a única tendência que Matrix previu.

Jogador N° 1

Outra representação - mais contemporânea e especulativa - do metaverso está no filme Jogador N° 1, derivado de um livro homônimo publicado em 2011. O filme se passa em um futuro acossado por crises energéticas e aquecimento global, dois riscos tangíveis, em que as pessoas escapam das agruras integrando um jogo social no metaverso.

Assim como o metaverso da Meta, o de Jogador N° 1 é acessado por equipamentos de realidade virtual. Em consonância, a Meta investe no desenvolvimento de sua própria tecnologia de óculos de imersão.

As previsões do cinema

Alex McDowell, da Experimental.Design, é a mente por trás de diversos conceitos do filme Minority Report, de 2002, dirigido por Steven Spielberg. A película narra um futuro distópico em que é possível antecipar a ocorrência de crimes. Pouco mais de uma década depois do lançamento do filme, tecnologias forenses preditivas com base em dados já estavam sendo aplicadas.

Essa não foi a única antecipação de tendências da obra, que muniu McDowell de credenciais para seus empreendimentos futuristas. Eis outros de seus acertos na película:

  • Carros autônomos: montadoras ao redor do mundo estão concorrendo para atender a um mercado que já é realidade Minority Report. Sistemas de direção sem a necessidade de um motorista ainda não são comercial e tecnologicamente viáveis, mas é uma direção que parece sem volta no setor automotivo.
  • Anúncios personalizados: no filme, o protagonista é perseguido por propagandas que conversam diretamente com ele. Na internet, os anúncios com base nos interesses dos usuários fazem parte do dia a dia. Big Techs, como o Google, rastreiam o consumo de conteúdo dos internautas e exibem publicidade com base nas preferências de cada indivíduo.
  • Reconhecimento óptico e facial: o protagonista da obra de Spielberg tenta escapar dos sistemas de monitoramento da cidade com um transplante de retina. No mundo real, algoritmos de reconhecimento facial e biometria já estão sendo usados em sistemas de segurança e redes sociais conseguem identificar pessoas através de fotos - sob críticas.

Das telas para a vida

Outros filmes também acertaram tecnologias que só seriam desenvolvidas tempos depois. Eis alguns outros exemplos da realidade inspirada pela arte:

  • Tablets: o clássico de Stanley Kubrick 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) apresenta uma cena em que astronautas estão conferindo informações em um aparelho fino de tela plana. O design apresentado pelo filme é muito semelhante aos tablets modernos.
  • Casa inteligente: o filme A Casa Inteligente, da Disney, acertou até mesmo o nome do conceito. Nele, o dia a dia da residência é administrada por um robô, que atende a comandos de voz e executa tarefas. Dispositivos de casa inteligente foram popularizados pelo Amazon Echo e sua assistente virtual, a Alexa.
  • Videoconferência: a comunicação remota por vídeo é uma das tecnologias mais frequentemente retratadas pelas ficções futuristas. Star Trek apresentou o conceito em um episódio de 1966 e a ideia foi replicada em outras obras, como Aliens e Blade Runner.
  • Robô aspirador: embora mais fantasioso e lúdico do que as outras obras aqui citadas, o desenho Os Jetstons introduziu um aparelho que limpava a casa automaticamente. Hoje, os robôs-aspiradores já causam até batalhas comerciais.

Conclusão

Ari Popper, CEO da SciFutures, argumenta que é importante antecipar o futuro porque é lá que está o consumidor dos produtos que uma organização está planejando. Ele exemplifica: a Intel leva dez anos para desenvolver e produzir um novo chip, portanto, ela precisa saber para que e como os computadores serão usados com uma década de antecedência.

Obras de ficção canalizam a criatividade, construindo cenários que agem como motores para a criação de novas ideias - onde se inicia o processo de inovação. O exercício de especular o futuro para antecipar tendências ajuda na compreensão das dinâmicas sociais e direções da tecnologia.

O processo de inovação passa pela antecipação das tendências - e o InovaCoop tem um curso online de pesquisador de tendências voltado ao cooperativismo. Desenvolvido em parceria com a Descola, o curso ensina a olhar para cenários e contextos de uma forma estratégica, para te ajudar a mapear tendências a partir de mudanças sociais, de produtos ou de comportamentos.

Pistas que ajudem na interpretação das tendências para o futuro podem estar em diversos lugares. Essa é uma tarefa complexa, contínua e multidisciplinar. E prestar atenção na ficção pode dar bons insights do que está por vir. 

Conteúdo desenvolvido
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Coonecta