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O que é cooperativismo de plataforma

Conheça o movimento que propõe plataformas com propriedade e governança compartilhadas, em formato de cooperativas

COOPERATIVISMO DE PLATAFORMA08/12/20239 minutos de leitura

Para entender o cooperativismo de plataforma, precisamos voltar a 2010, quando surgiu o conceito de Economia de Compartilhamento. Tal movimento era uma resposta à crise financeira americana de 2008 e estava ligado à capacidade da tecnologia em transformar as relações de trocas de valor e gerar uma economia mais acessível e dinâmica. Logo surgiram plataformas como Uber, Lyft e AirBNB, dentre várias outras.

O Cooperativismo de Plataforma, por sua vez, surge anos depois, em 2014, como resposta ao forte crescimento e efeitos dessas plataformas tradicionais. O termo foi cunhado pelo professor Trebor Scholz, no livro “Cooperativismo de Plataforma - Contestando a economia do compartilhamento corporativa”. A edição brasileira foi traduzida para o português pelo advogado Rafael Zanatta com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.

Scholz, que lidera um consórcio sobre o tema, propõe um modelo no qual há uma mudança estrutural e significativa do conceito de propriedade na economia de compartilhamento, colocando a força de trabalho como proprietária das plataformas. Em outras palavras, é como se o Uber fosse dos motoristas.

Travis Higgins, consultor de projetos e embaixador da Coonecta nos EUA, resume o cooperativismo de plataforma como “não apenas um movimento, mas também um modelo de negócio”. Prova disso é que já existem mais de 450 cooperativas de plataforma no mundo, de formatos e setores diversos, segundo o diretório do site The Internet of Ownership.

Antes de avançarmos no conceito de cooperativismo de plataforma, vamos, antes, entender o que é uma plataforma e por que seus efeitos deram origem às cooperativas de plataforma.

O que é uma plataforma

Embora pareça simples, o conceito de plataforma está modificando radicalmente os negócios, a economia e a sociedade. Geoffrey Parker, Sangeet Choudary e Marshall Van Alstyne, autores do livro “Plataforma - A revolução da estratégia”, definem plataforma como:

“Uma empresa que viabiliza interações que criam valor entre produtores e consumidores externos. A plataforma oferece uma infraestrutura para tais interações e estabelece condições de funcionamento para elas. O propósito primordial da plataforma é consumar o contato entre usuários e facilitar a troca de bens, serviços ou moedas sociais, propiciando assim a criação de valor para todos os participantes.”

Na prática significa que a estratégia mudou: evoluiu do controle de recursos internos exclusivos, para a orquestração de recursos externos. (Pense no modelo do AirBNB, por exemplo, cujos quartos ofertados são de terceiros). Ou seja, atividades que tradicionalmente eram internas, se tornam externas, pois boa parte da riqueza dessas plataformas é produzida pela própria comunidade.

Uma nova lógica de mercado

Isso leva a uma descoberta de capacidades ociosas. Desta forma, a comunidade que antes costumava apenas demandar, passa a contribuir diretamente como fornecedora. O AirBNB, por exemplo, orquestrou recursos para que uma capacidade antes ociosa, os quartos vagos, se tornassem produtivos.

Em resumo, a economia compartilhada reside na ideia de que muitos itens - como automóveis, casas, barcos e até cortadores de grama - ficam ociosos durante a maior parte do tempo. E as plataformas geram valor para a ociosidade de pessoas e bens. Segundo os autores, o que faz as plataformas terem sucesso são os seus efeitos de rede:

“O valor do Uber cresce para cada um de seus participantes quando mais pessoas o utilizam - o que atrai ainda mais usuários e, consequentemente, amplia novamente o valor do serviço. Os efeitos de rede se referem ao impacto exercido pela comunidade de usuários de uma plataforma sobre o valor criado para cada um deles individualmente”.

Impactos da economia de plataforma

Em geral, os efeitos de rede são positivos e negativos. Os positivos se referem à capacidade de uma plataforma grande e bem gerenciada de produzir valor significativo para cada um de seus usuários, oferecendo independência e flexibilidade.

Negócios como Uber, Dropbox, Airbnb e Instagram, por exemplo, não têm seu valor atribuído pela estrutura de custos. Todas são valiosas por conta das comunidades que participam de suas plataformas e dos recursos, antes ociosos, movimentados por elas. O Instagram, por exemplo, não foi vendido por U$ 1 bi por conta de seus 13 funcionários.

Já os efeitos negativos estão ligados à possibilidade do crescimento quantitativo da comunidade de uma plataforma mal gerenciada resultar em redução do valor ofertado para cada usuário. Por isso, protestos contra as plataformas são cada vez mais comuns.

As paralisações realizadas pelos entregadores têm como principal objetivo a busca por melhores condições de trabalho. Segundo matéria da BBC Brasil, parte deles está buscando um caminho alternativo para melhorar de vida com a criação de cooperativa, para terem seu próprio aplicativo de entrega.

Os conceitos do cooperativismo de plataforma

Apesar do impacto positivo na redução de custos e eficiência no aproveitamento de capacidades ociosas, a economia do compartilhamento tem seus efeitos colaterais, especialmente na precarização da mão de obra, a chamada uberização do trabalho.

E é justamente para corrigir essas distorções que surge o cooperativismo de plataforma, que propõe plataformas com propriedade e governança compartilhadas, em formato de cooperativas. O professor Trebor Scholz explica o conceito em três partes:

1. Primeiro, baseia-se na clonagem do coração tecnológico de algumas plataformas como Uber, TaskRabbit, Airbnb ou UpWork. Ele recepciona a tecnologia, mas quer colocar o trabalho em um modelo proprietário distinto, aderindo a valores democráticos, para desestabilizar o sistema quebrado da economia do compartilhamento, que beneficia somente poucos. É nesse sentido que o cooperativismo de plataforma envolve mudança estrutural, ou seja, uma mudança de propriedade.

2. O cooperativismo de plataforma trata de solidariedade, que faz muita falta nessa economia baseada em força de trabalho distribuída e muitas vezes anônima. Plataformas podem ser possuídas e operadas por sindicatos inovadores, cidades e várias outras formas de cooperativas, tudo desde cooperativas multissetoriais (multi-stakeholder co-op), cooperativas de propriedade dos trabalhadores (worker-owned co-op) ou plataformas cooperativas de propriedade dos “produsuários” (producer-owned platform cooperatives).

3. Por fim, o cooperativismo de plataforma é construído na ressignificação de conceitos como inovação e eficiência tendo em vista o benefício de todos, e não a obtenção de lucros para poucos.

Princípios do cooperativismo de plataforma

Além de definir o conceito, Scholz lista 10 princípios para o cooperativismo de plataforma que são sensíveis aos problemas críticos que a economia digital enfrenta hoje. “O capitalismo de plataforma é incrivelmente não efetivo em cuidar das pessoas”, afirma Scholz.

Segundo um estudo da Co-operatives UK, as cooperativas de plataforma combinam os princípios do cooperativismo com as oportunidades de tecnologias de plataforma, conectando indivíduos diretamente com pouca necessidade de intermediários.

Benefícios do cooperativismo de plataforma

O ponto central do cooperativismo é a crença em uma forma de negócio mais justa, em que todos os interessados possam trabalhar juntos para o bem comum. Entre as vantagens econômicas e sociais que podem ser identificadas nas cooperativas estão:

• Maior produtividade devido ao maior envolvimento dos trabalhadores com sua organização, com níveis mais fortes de confiança e compartilhamento de conhecimento mais eficaz.

• Os números mostram que as cooperativas têm quase duas vezes mais chances de sobreviver nos primeiros cinco anos quando comparadas às empresas tradicionais.

• As cooperativas demonstraram ter níveis mais baixos de rotatividade, menor desigualdade salarial e menores taxas de absenteísmo em comparação com empresas tradicionais.

A pesquisa do Reino Unido levanta a discussão que há toda uma série de debates e proposições relacionadas que buscam abordar os impactos adversos do capitalismo de plataforma.

Como tal, o modelo cooperativo de plataforma deve ser reconhecido no contexto de iniciativas como 'tecnologia para o bem' e 'tecnologia responsável', que geralmente procuram conscientizar os negócios de tecnologia do impacto social de seus empreendimentos. Resta aos envolvidos construírem juntos essa narrativa.

Desafios para o futuro do cooperativismo de plataforma

É possível afirmar que o cooperativismo de plataforma - como movimento e modelo de negócio - tem ainda grandes desafios pela frente e avança pouco a pouco. Mas é inegável a necessidade de questionarmos o atual modelo das plataformas digitais e propor o cooperativismo de plataforma como solução. Afinal, por que não vemos o surgimento de “startups cooperativas”?

Um dos desafios, por exemplo, é a questão do financiamento à criação de plataformas cooperativas. Conforme explica o advogado e diretor-geral da Escoop, Mário de Conto, as cooperativas de plataformas ainda precisam achar uma forma de conseguir financiamento, já que a legislação brasileira não permite sócios-investidores.

“Não são permitidos sócio-investidores que só participam do negócio como investidores, buscando um retorno financeiro. A legislação não permite ter um sócio meramente investidor, mas permite, por exemplo, a criação de uma empresa subsidiária, da qual a cooperativa pode ser sócia”, explica.

Mário De Conto é um dos pesquisadores do tema no Brasil e, como parte de sua pesquisa, também estuda os modelos internacionais, o que o levou a apontar outro desafio: a governança. “Muitas das cooperativas de plataforma internacionais que nós pesquisamos são cooperativas multi-stakeholders, ou seja, que permitem diversos grupos e associados. É uma situação um pouco rara no Brasil, que gera o desafio de pensar numa cooperativa com essa configuração”, avalia.

Avanços e fortalecimento do ecossistema

Por outro lado, houve avanço significativo com a liberação, de forma permanente, da realização das assembleias digitais. A aprovação no Senado Federal ocorreu no início de julho de 2020. “A transformação digital já é uma realidade no cooperativismo e os associados já tinham esse desejo de participar e votar à distância, de forma virtual. Agora já existe uma legislação nesse sentido, o que é mais um passo importante”, finaliza o diretor da Escoop.

No documento Propostas para um Brasil mais cooperativo 2023-2026, a OCB defende que o futuro do setor passa pelo apoio e estímulo ao cooperativismo de plataforma. Para a entidade, o modelo se mostra uma opção sustentável para as novas tendências de se trabalhar em rede, conectando pessoas e as colocando no centro dos negócios.

O Sistema OCB apoiou a Conferência Internacional de Cooperativismo de Plataforma de 2022, que aconteceu no Rio de Janeiro. O cooperativismo de plataforma está mostrando sinais de amadurecimento no Brasil, tornando o trabalho e economia de plataforma mais justos.

Além disso, o Sistema OCB também marcou presença na edição de 2023 do evento, sediado na Índia, com o tema “Raízes da resiliência: construindo coops de plataforma para economias locais sustentáveis e feministas”. Guilherme Costa, gerente do Núcleo de Inteligência e Inovação do Sistema OCB, discutiu a justiça econômica e as políticas públicas perante o prisma do cooperativismo de plataforma.

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Coonecta